The narrator tells a story about his domestic life with a black cat named Pluto. He starts off by describing his love for animals and how he and his wife owned many different pets. However, the narrator's character begins to change due to his alcoholism, leading him to mistreat his pets, except for Pluto. One night, in a fit of rage, he gouges out one of Pluto's eyes. Afterward, he feels remorse and hangs the cat from a tree, leading to the destruction of his house by fire. In the ruins, he discovers a grotesque image of a cat on the remaining wall. The narrator is haunted by guilt and seeks to replace Pluto. Overall, the story explores themes of guilt, alcoholism, and the consequences of one's actions.
O Gato Preto Edgar Allan Poe NĂŁo espero nem peço que se dĂŞ crĂ©dito Ă histĂłria sumamente extraordinária e, no entanto, bastante domĂ©stica que eu vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus prĂłprios sentidos se negam a aceitar. NĂŁo o bastante, nĂŁo estou louco e com toda certeza nĂŁo sonho, mas amanhĂŁ morro e, por isso, gostaria hoje de aliviar o meu espĂrito. Meu propĂłsito imediato Ă© apresentar ao mundo clara e sucintamente, mas sem comentários, uma sĂ©rie de simples acontecimentos domĂ©sticos.
Devido Ă s suas consequĂŞncias, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruĂram. No entanto, nĂŁo tentei esclarecĂŞ-los. Em mim, quase nĂŁo produziam outra coisa senĂŁo horror. Mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terrĂveis do que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligĂŞncia que reduza o meu fantasma a algo comum. Uma inteligĂŞncia mais serena, mais lĂłgica e muito menos excitável do que a minha. Que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com o terror, nada mais do que uma sucessĂŁo comum de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura do meu coração era tão evidente que me tomava algo dos gracejos de meus companheiros. Gostava especialmente de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter, e quando me tornei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer.
Aos que já sentiram afeto por um cĂŁo fiel e sagaz, nĂŁo preciso me dar o trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo no amor desinteressado e capaz de sacrifĂcios de um animal, que toca diretamente no coração daqueles que tiveram ocasiões frequentes de comprovar a amizade mesquinha e frágil e fidelidade de um simples homem. Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante a minha.
Notando meu amor pelos animais domĂ©sticos, nĂŁo perdi a oportunidade de arranjar as espĂ©cies mais agradáveis de todos os bichos. TĂnhamos pássaros, peixes, dourados, um cĂŁo, coelhos, um macaquinho e um gato. Este Ăşltimo era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro, de espantosa sagacidade. Ao referir-se a sua inteligĂŞncia, minha mulher, que no Ăntimo do seu coração era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões Ă antiga crença popular de que todos os gatos pretos sĂŁo feiticeiras disfarçadas. NĂŁo que ela se referisse seriamente a isso.
Menciono o fato apenas porque aconteceu de lembrar-me disto neste momento. Pluto, assim se chamava o gato, era meu preferido, com o qual eu mais me distraĂa. Eu sĂł o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade mesmo em impedir que me acompanhasse pela rua. Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais nĂŁo sĂł o meu caráter, como o meu temperamento, em rubeiço ao confessá-lo, sofreram. Devido ao demĂ´nio da intemperância, uma modificação radical para a pior, tomava-me, dia a dia, mais tossiturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros.
Sofri ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais certamente sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava alguma atenção, como ainda os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo. Ao passo disso, senti escrúpulo algum em maltratar coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim.
Que outro mal pode se comparar ao álcool? E, no fim, atĂ© Pluto, que começava agora a envelhecer, por seguinte, se tomara um tanto rabugento. AtĂ© mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor. Certa noite, ao voltar Ă casa, muito embriagado de uma de minhas andanças pela noite, tive a impressĂŁo de que o gato evitava minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violĂŞncia, me feriu a mĂŁo. Levemente, com os dedos, uma fĂşria demonĂaca apoderou-se instantaneamente de mim.
Já não sabia mais o que eu estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pelo gênebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do meu bolso um canivete. Abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta, e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos. Enrobeço, estremeço, abrazo-me de vergonha, ao referir-me aqui esta abominável atrocidade. Quando a chegada da manhã, voltei à razão, dissipados já os vapores de minha orgia noturna.
Experimentei pelo crime que praticara um sentimento que era um misto de horror e remorso. NĂŁo passou de um sentimento superficial e equĂvoco, pois minha alma permaneceu impassĂvel. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho e a lembrança de que acontecera. Entre mentes, o gato se restabeleceu lentamente. A Ăłrbita do olho perdido se apresentava, Ă© certo, um aspecto horrĂvel, mas nĂŁo parecia mais sofrer de dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se podia esperar, fugia, tomado de extremo horror, a minha aproximação.
Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração, para que, a princĂpio, sofresse com aquela evidente aversĂŁo por parte de um animal, que antes me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. EntĂŁo, como para perder-me final e irrecivelmente, surgiu o espĂrito da perversidade? Desse espĂrito, a filosofia nĂŁo toma conhecimento, nĂŁo o bastante tĂŁo certo, como existe minha alma. Creio que a perversidade Ă© um dos impulsos primitivos do coração humano, uma das faculdades ou sentimentos primários que dirigem o caráter do homem.
Quem nĂŁo se viu centenas de vezes a cometer ações viz ou estĂşpidas, pela Ăşnica razĂŁo de que nĂŁo devia cometĂŞ-las, acaso nĂŁo sentimos uma inclinação constante, mesmo quando estamos no melhor do nosso juĂzo, para violar aquilo que Ă© lei. Simplesmente porque a compreendemos como tal. Esse espĂrito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua prĂłpria natureza, de fazer o mal pelo prĂłprio mal.
Foi o que me levou a continuar, e afinal, a levar a cabo o suplĂcio que infligira ao inofensivo animal. Uma manhĂŁ, a sangue frio, meti-lhe um nĂł corredil em torno do pescoço, em um forqueio no galho de uma árvore. Filo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o, porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que nĂŁo me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o, porque sabia que estava cometendo um pecado, um pecado mortal, que comprometia a minha alma imortal, afastando-a do se Ă© que isso era possĂvel, na misericĂłrdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitivamente terrĂvel.
Na noite do dia em que fui cometido esta ação tão cruel, fui despertado pelo grito de fogo. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Fui com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu, conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e desde então me entreguei ao desespero. Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito, entre o desastre e a atrocidade por mim cometida, mas estou descrevendo uma sequência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos desta cadeia de acontecimentos.
No dia seguinte ao incĂŞndio, visitei as ruĂnas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa Ăşnica exceção era constituĂda por um fino tambique interior, situado no meio da casa, junto ao que se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aĂ, em grande parte, resistido Ă ação do fogo, coisa que eu atribuĂ ao fato de ele ter sido construĂdo recentemente. Densa multidĂŁo se reunira em torno desta parede, e muitas pessoas examinavam com particular atenção e minuciosidade.
Uma parte dela, as palavras estranho e singular, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me Ă curiosidade. Aproximei-me, e vi como se gravada em baixo relevo sobre a superfĂcie branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidĂŁo verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço do animal. Logo que vi tal aparição, pois nĂŁo poderia considerar aquilo como outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexĂŁo veio em meu auxĂlio.
O gato, lembrei-me, foram enforcado num jardim existente junto Ă casa, aos gritos de alarme. O jardim fora imediatamente invadido pela multidĂŁo. AlguĂ©m deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o atravĂ©s de uma janela aberta para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vĂtima de minha crueldade no gesso recente colocado sobre a parede, que permanecera de pĂ©. O caldo-muro com as chamas e o amonĂaco foram desprendidos da carcaça.
Produziram a imagem tal qual eu agora via. Embora isso satisfizesse prontamente a minha razĂŁo, nĂŁo conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com a minha consciĂŞncia. Pois, o surpreendente fato que acabo de descrever nĂŁo deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressĂŁo. Durante meses, nĂŁo pude livrar-me do fantasma do gato. E, nesse espaço de tempo, nasceu no meu espĂrito uma espĂ©cie de sentimento que parecia remorso, embora nĂŁo o fosse. Cheguei mesmo a lamentar a perda do animal e a procurar no sorde dos lugares que entĂŁo frequentava outro bichano da mesma espĂ©cie e de aparĂŞncia semelhante que pudesse substituĂ-lo.
Uma noite em que me achava sentado, meio aturtido, num ântro mais que infame, tive a atenção despertada subitamente por um objeto que jazia no alto de um dos enormes barris de gĂŞnebra ou rum, que constituĂam quase que o Ăşnico mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que entĂŁo me surpreendeu foi nĂŁo ter visto antes o que fazia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mĂŁo. Era um gato preto, enorme, tĂŁo grande quanto Pluto, e que, sobre todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele.
Pluto nĂŁo tinha um Ăşnico pelo branco em todo o corpo, e o bichano que a lhe possuĂa uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobri-lhe quase toda a regiĂŁo do peito. Ao acariciar-lhe o dorso, erguiu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mĂŁo, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apreciei-me em propor ao dono a sua aquisição. Mas este nĂŁo manifestou interesse algum pelo felino.
Não o conhecia, jamais o vira antes. Continuei a acariciá-lo, e, quando me dispunha voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse, detendo-me, de vez em quando, no caminho para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse à casa, tomando-se logo um dos bichanos preferidos de minha mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, que justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que, não sei como nem porquê, seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia.
Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara. Impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe abati nem pratiquei nada contra ele. Qualquer violência. Mas, aos poucos, muito gradativamente, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo em silêncio sepulcral de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste. Sem dúvida, o que aumentou meu horror pelo animal, foi a descoberta na manhã do dia seguinte ao que levei para casa que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos.
Tals circunstâncias tambĂ©m apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho. Pois, como já disse, era dotada, em alto grau, desta ternura de sentimentos que constituĂra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros. No entanto, a preferĂŞncia que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razĂŁo direta da aversĂŁo que sentia por ele. Seguia meus passos com uma pertinĂŞncia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse.
Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira ou me saltava ao colo, cobrindo-se de suas odiosas carĂcias. Se levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou entĂŁo, cravando suas longas e afiadas garcas em minhas roupas. Subia por ela atĂ© o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse impeto de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazĂŞ-lo devido, em parte, Ă lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo, apressa-me a confessá-lo pelo pavor extremo que o animal me despertava.
Este pavor nĂŁo era exatamente um pavor de mal fĂsico e, contudo, nĂŁo saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar, sim, mesmo nesta cela de criminoso. Quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que eu já me referi, e que constituĂa a Ăşnica diferença visĂvel entre aquele estranho animal e o outro.
Eu me enforcara. O leitor, de certo, se lembrará que aquele sinal, embora grande, tinha, a princĂpio, uma forma bastante indefinida, mas, lentamente, de maneira quase imperceptĂvel, que minha imaginação, durante muito tempo, lutou para rejeitar como fantasiosa. Adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer. E, sobretudo, por isso, eu o encarava como um monstro de horror e repugnância, do qual, se eu tivesse coragem, teria me livrado.
E, agora, confesso a imagem de uma coisa odiosa, abominável. A imagem da forca. Ă“, lĂşgebre e terrĂvel, máquina de horror e de crime, de agonia e de morte. Na verdade, naquele momento, eu era um miserável. Um ser que, alĂ©m da minha prĂłpria misĂ©ria da humanidade, era uma besta-fera, cujo irmĂŁo fora, por mim, desdinhosamente destruĂdo. Uma besta-fera que se engendrara de mim. Um homem feito a imagem do Deus AltĂssimo. Ă“, grande e insuportável, infortĂşnio. Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a benção do descanso.
Durante o dia, o animal nĂŁo me deixava sĂł em um Ăşnico momento. A noite. Despertava de hora em hora, tomando do indescritĂvel terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto e seu enorme peso. Encarnação de um pesadelo que nĂŁo podia se afastar de mim. Repousado eternamente sobre o meu coração. Sobre a pressĂŁo de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus Ăşnicos companheiros, os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos.
Minha rabugice habitual se transformou em Ăłdio por todas as coisas e por toda a humanidade, enquanto eu, agora, me entregava cegamente a sĂşbitos, frequentes e irreprimĂveis acessos de cĂłlera. Minha mulher, pobre dela, nĂŁo se queixava nunca, convertendo-se na mais paciente e sofredora das vĂtimas. Um dia, acompanhou-me para ajudar-me numa das tarefas domĂ©sticas, atĂ© o porĂŁo de um velho edifĂcio em que nossa pobreza me obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase fazendo rolar escada abaixo, me asperou a ponto de perder o juĂzo, apanhando uma machadinha e esquecendo do terror poeiro que atĂ© entĂŁo contivera minha mĂŁo.
Dirigiu o animal um golpe imortal, que teria sido mortal se atingisse o alvo, mas minha mulher segurou meu braço, detendo o golpe, tomando, entĂŁo, de fĂşria demonĂaca. Livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a mancha do cĂ©rebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar nem um gemido. Realizando o terrĂvel assassĂnio, procurei, devido por sĂşbita resolução, esconder o corpo, que nĂŁo poderia retirá-lo de casa nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser vistos pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei por um instante em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruĂ-los por meio do fogo. Resolvi depois cavar uma fossa no chĂŁo da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de ideia e decidi metĂŞ-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria na forma habitual, fazendo com que um carregador retirasse da minha casa. Finalmente tive uma ideia que pareceu muito mais prática. Resolvi emparedá-la na adega, como faziam os monges da Idade MĂ©dia com as suas vĂtimas.
Aquela adega se prestava muito bem para o tal propĂłsito. As paredes nĂŁo haviam sido construĂdas com muito cuidado, e pouco antes haviam sido cobertas em toda a extensĂŁo de um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliĂŞncia numa das paredes, produzida por alguma chaminĂ© ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. NĂŁo duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.
E nĂŁo me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e, tendo depositado o corpo com cuidado de encontro Ă parede interior, segurei-o nesta posição, atĂ© poder recolocar sem grande esforço os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia, com toda a precaução possĂvel. Preparei uma argamassa que nĂŁo se podia distinguir da anterior, cobrindo-a escrupulosamente a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correrá bem. A parede nĂŁo apresentava o menor sinal de ter sido rebocada.
Limpei o chĂŁo com o maior cuidado e, lançando o olhar em torno, disse, de mim para comigo. Pelo menos aqui o meu trabalho nĂŁo foi em vĂŁo. O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tanta desgraça, pois resolvera finalmente matá-lo. Se naquele momento tivesse podido encontrá-lo, nĂŁo haveria dĂşvida quanto Ă sua morte. Mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violĂŞncia de minha cĂłlera, e procurava nĂŁo aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espĂrito.
ImpossĂvel descrever ou imaginar o profundo abençoado alĂvio que me causava a ausĂŞncia de tĂŁo detestável felino. NĂŁo apareceu tambĂ©m durante a noite, e assim, pela primeira vez desde sua entrada na casa, consegui dormir tranquila e profundamente. Sim, dormi mesmo com aquele peso assassĂneo sobre a minha alma. Transcorreram o segundo e o terceiro dia, e o meu algoz nĂŁo apareceu. Pude respirar novamente, como um homem livre. O monstro aterrorizado fugira para sempre de casa. NĂŁo tomaria vĂŞ-lo.
Minha felicidade era infinita. A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se também a uma vistoria de minha casa, mas naturalmente nada podia ser descoberto. Eu considerava já como uma coisa certa a minha felicidade futura. No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou inesperadamente à casa, e realizou de novo uma rigorosa investigação, seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultava o cadáver.
NĂŁo experimentei a menor perturbação. Os policiais pediam-me que os acompanhassem em sua busca, mas nĂŁo deixaram de esquadrinar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desciam novamente ao porĂŁo. NĂŁo se alterei o mĂnimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como um dia um inocente. Andei por todo o porĂŁo, de ponta a ponta, com os braços cruzados sobre o peito. Caminhava calmamente de um lado para o outro. A polĂcia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair.
O jĂşbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contĂŞ-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, a Ăşnica palavra, Ă guisa de triunfo, e tambĂ©m para tomar duplamente evidente a minha inocĂŞncia. Senhores, disse por fim, quando os policiais já subiam a escada. É para mim motivo de grande satisfação haver desfeito de qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores uma Ăłtima saĂşde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta Ă© uma casa muito bem construĂda.
Quase nĂŁo sabia o que dizia e me desejo de falar com naturalidade. Podia mesmo dizer que Ă© uma casa excelentemente construĂda. Estas paredes, os senhores já se vĂŁo? E estas paredes sĂŁo de grande solidez. Nesta altura, movido por pura e frenĂ©tica fanfarronada, bati com força com a bengala que tinha na mĂŁo, justamente na parte da parede atrás da qual achava o corpo da esposa de meu coração. Deu que Deus me guarde e livre das garras de Satanás.
O mau eco das batidas mergulhou no silĂŞncio. Uma voz me respondeu no fundo da tumba, primeiro com o choro entrecortado e abafado, com os soluços de uma criança. Depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contĂnuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo. Como somente poderia ter surgido do inferno, na garganta dos condenados, em sua agonia e dos demĂ´nios exultantes com a sua condenação? Enquanto aos meus pensamentos Ă© loucura falar, sentindo-me desfalecer, campaleei Ă parede oposta.
Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizados pelo terror. Decorrido de um momento, doze braços segurosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição e coberto de sangue coagulado, pareceu ereto aos olhos do presente. Sobre a sua cabeça, com boca vermelha dilatada e um Ăşnico olho chamejante, achava-se repousado um animal odioso, cuja astĂşcia me levou ao assassĂnio e a cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu sempre havia emparedado o monstro dentro da tumba.